Da fantasia dos fatos
Depois de longa exposição, análise e conclusões da crise da década de 60, que engolfou o mundo e, na esteira, o movimento espírita, dei como explicadas todas as razões da perversa acusação contra o médium Divaldo Pereira Franco. Diante de tudo o que eu então recordava enquanto ia restabelecendo a verdade dos fatos, deveria o assunto ter sido encerrado. Contudo, conhecendo bem as disputas entre o bem e o mal, não pude deixar de admitir a hipótese de uma recidiva louca. As Trevas são muito criativas. Deixei, pois, escrito, no último capítulo de A Anti-História das Mensagens Co-piadas, o seguinte parágrafo (pp. 199/200):
Portanto, nem há mais aquele clima de convulsão para alimentar novas crises, pelo menos por enquanto. Assim, é hora de encerrar a inglória celeuma das mensagens co-piadas! O espiritismo, que era o grande alvo, não soçobrou. As Trevas sofreram nova derrota. Provisória, é claro, porquanto a História continua a ser escrita e nada nem ninguém está fora dela. O Mal não costuma desistir tão facilmente. Vai revestir novas tentações e novas tentativas para nos desviar da rota. Mas, por ora, desde que plantada a verdadeira fraternidade na seara espírita, esses embaixadores cavernosos estarão bem mais anemizados como vampiros perdidos em campo de hortaliças. No meu justificado júbilo transcrevo a seguir a palavra do Cristo e de mais dois missionários, a qual valerá, assim espero, de advertência e principalmente de conclamação à paz e à consagração teleológica da beleza da História, com a absorvência definitiva desse maligno segmento tumoral da Anti-História do espiritismo.
Bem, não demorou muito. Primeiramente, caiu em minhas mãos o mais recente livro do “médium” Carlos Antônio Baccelli: 100 Anos de Chico Xavier – Fenômeno Humano e Mediúnico, acrescido da epígrafe “em sua biografia mais completa” (Edições Pedro Paulo, Uberaba, 2010). Depois, o livro caiu das minhas mãos, tal a densidade das mentiras. Pesou em especial a afirmativa do autor, largada com chocante e emplumado cinismo, de que todo o texto “é a expressão lídima da Verdade”. E mais: que não se arredou “sequer um milímetro dos acontecimentos que, no dia a dia, foram compondo a vida singular do grande medianeiro!” No arremate da apresentação (p. 12), ainda sensaciona com jactância corajosa: “estou plenamente convicto de que não traí a confiança do amigo e companheiro”.
Vamos, a priori, sumariar a contestação: 1 - Não é a expressão da lídima Verdade; 2 - Ficou a anos-luz de distância de alguns episódios; 3 - Traiu, sim, a confiança e a memória do ex-amigo, antes e depois da desencarnação.
Anotemos, desde logo, que a chorumela tem a pretensão de ser “a biografia mais completa”, no entanto, além de ignorar vários acontecimentos íntimos que marcaram a vida do Chico, repete outros tantos do mais amplo conhecimento público, que estão apenas requentados e oferecidos numa travessa de lugares-comuns. De inédito somente alguns registros de menor importância, sem grande novidade histórica e que às vezes atestam que o biógrafo não sabe o que diz, imagina sem pudor e acaba tisnando a imagem do Chico.
E para antecipar que não está preocupado com os flagrantes que alguém pudesse assinalar das derrapadas históricas, afirma, com certo desdém, na mesma página 12: “O resto não me interessa.” É pena, porque é principalmente no resto que está a parte mais gritante das falsidades.
A reposição completa de toda a verdade vou adiar, pois demanda espaço bem maior deste que, no momento, pretendo preencher com questões urgentes e gravemente adulteradas, como a do Prêmio Nobel da Paz e da carta de 1962. No embalo da mesma insensatez, Carlos Baccelli desta vez resolveu também me atingir, quando menos de raspão, ao comentar o caso das materializações de Uberaba (pp. 247 a 266), de que fui um dos protagonistas. Tratarei desse assunto noutra oportunidade. Aqui adianto apenas que a responsabilidade pelo tal pagamento a que se refere está lançada no livro em paranóico texto e, pois, com indecorosa leviandade. Mas – prometo – fica isso para outra ocasião.
O livro não consegue ser a biografia sequer da Gata Borralheira, mas tão somente a autobiografia de um nefelibata perdido entre nuvens escuras de tempestuosa farsa, que vem arrematar fantasias já antes costuradas, como as de Chico Xavier Responde (Edições Pedro Paulo), onde reproduz “entrevista” do querido médium concedida nos céus da espiritualidade (?!). Todo esse papel impresso vem juntar-se à subliteratura contida em mais outras obras, assinadas por nomes respeitáveis, como Ignácio Ferreira, que acaba de fazer, em Nosso Lar, pós-graduação em obstetrícia ectoplasmática e já inaugurou na terra a função de blogueiro do Além. Estudiosos sérios, como José Passini, já dissecaram alguns desses trabalhos ditos mediúnicos evidenciando sua completa dissonância com a doutrina codificada por Allan Kardec. A entrevista com André Luiz na espiritualidade identificando-se como Carlos Chagas é outro relato risível, na contramão de todas as provas do meu livro O Verdadeiro André Luiz. Somente espíritas muito toscos ou muito desinformados são ainda capazes de lhes aceitar o psicodélico conteúdo. É toda uma editoração fantasiosa, patética, acaciana e absolutamente aquém do bom-senso, a qual apenas serve para fazer dinheiro e, impressa a rodo, dar mais trabalho à Comlurb aqui do Rio.
Naquele Chico Xavier Responde, também com intenções biográficas, os registros colocados na boca do Chico sobre variados e importantes assuntos expõem inusitada displicência em tom de quem parece falar de abobrinhas, paçoquinhas e picolés. É total a falta de profundidade diante de questões ponderosas e tão complexas. A certa altura, ele é perguntado se era rustenista, e então nega secamente. Ora, todo o movimento espírita sabe de sobejo que o Chico sempre foi e nunca deixara de ser a favor de Roustaing. Mesmo os irascíveis adversários do missionário de Bordeaux reconheciam esse posicionamento do Chico, que tentavam e tentam justificar até hoje com o fato de que Emmanuel havia sido católico no passado (padre Manoel da Nóbrega) e, como tal, estaria ainda fixado nas ideias católicas, as mesmas que alegam existir em Os Quatro Evangelhos, de J.-B. Roustaing (conclusão viciada, pois Roustaing critica acidamente a Igreja e o catolicismo, além do que a Igreja perseguiu e exterminou os cátaros, que pregavam o corpo fluídico de Jesus). Assim – concluem –, Chico Xavier também gostava de Roustaing por influência do seu mentor e guardava igualmente ranço católico, com seus santinhos, etc. Em contrapartida, em meu livro Os Adeptos de Roustaing(AEEV, 1993), com uma extensa relação de adeptos ao lado das fontes para consulta, Emmanuel e Francisco Cândido Xavier aparecem em oito páginas (Chico Xavier: “Roustaing colocou Jesus no seu verdadeiro lugar”). Postas de lado as justificativas dos antirrustenistas, só restaria a vesgueira e o fanatismo para não se reconhecer que o Chico era adepto de Roustaing. Basta, pois, essa estupenda rata para evidenciar que a resposta no livro do Baccelli é ficção.
Depois, nesse mesmo padrão de absurdidade, temos outras respostas que somente alguém com muita desconsideração do Chico poderia fabricar. É exemplo a cômica pergunta sobre se ele é realmente Allan Kardec. Aflito para apresentar alguma confirmação à ilógica tese que defende, Carlos Baccelli não se pejou de atribuir ao Chico a autoidentificação que, encarnado, o honesto médium negou resolutamente. Daí que inventou a entrevista espiritual porque sabe muito bem que seus leitores são crédulos o suficiente para bater palmas extasiados. Por isso mesmo, nas páginas finais do livro biográfico insiste na enfadonha e totalmente infundada brincadeira. Ademais, existe ainda o testemunho do Arnaldo Rocha, este, sim, verdadeiro amigo íntimo de Chico Xavier. E, acima de tudo, temos os perfis psicológicos de Kardec e do Chico. O primeiro é de vigoroso conhecimento universalista; o segundo é de suspirosa sensibilidade maternal. Além do mais, como expus em matéria distribuída pela internet, em 1.11.03, o próprio Baccelli sempre soube que a identificação nunca foi autenticada, pois ele mesmo transcreveu em A Flama Espírita, de Uberaba, MG, de novembro de 1994, matéria de O Diário da Manhã, de Goiânia, GO, de 28.8.1988, em que o Chico nega peremptório: “– Não, não sou. Digo isto com serenidade.”
E nada mais surpreende. Esse repórter já entrevistou todo mundo de prestígio celestial. Nessa pauta de entrevistas sensacionais, não vai demorar e ele estará entrevistando Papai Noel e, dado ainda o mês de dezembro, teremos Jesus esclarecendo se o parto de Maria foi mesmo em Belém ou nas manjedouras da espiritualidade, onde agora reencarnam espíritos.
Em resumo: o livro da entrevista e o dos 100 anos são destituídos da mais mínima credibilidade, por isso mesmo de fácil confutação. Trucando infantilmente para uma plateia pediátrica, com tinturas chamativas de umcartoon, Carlos Baccelli só serve à sua patota linguelingues e pirulitos, que desidentificam a seriedade de Francisco Cândido Xavier. Basta comparar tais respostas com as que o respeitado e generoso médium deu, por exemplo, no Pinga-Fogo e em diversas outras ocasiões. Comparem-se o nível, o tom, o léxico, a sabedoria, abstração, naturalmente, da inteligente diferença nos momentos em que o elegante humor cabia. Impossível a autenticação. Tudo prestidigitado por esse Mandrake tupiniquim da psicografia, tortuoso artista clonado de um trêfego padre espanhol que ainda vive até hoje por aí fazendo mágica e dizendo que é espiritismo...
Bem, entremos nos capítulos que por agora nos interessam mais de perto: “Indicado ao ‘Nobel da Paz’” e “A carta de 1962”, duas peças que poderiam até ser dignas de A Comédia dos Erros, de Shakespeare, se apenas se restringissem a fazer gargalhar e terminar com todos felizes, mas, no entanto, são bem mais dignas de Hamlet, como ainda veremos aqui, pelo que têm de incoerência e morbidez.
Sigamos. O capítulo “Indicado ao ‘Nobel da Paz’” (pp. 343 a 354) é um repertório de inverdades e deturpações, apenas explicado pela raiva que o Carlos Baccelli guarda de Divaldo Pereira Franco. Esse sentimento não lhe permitiu registrar a cristalina verdade de que foi o conferencista e grande tribuno baiano quem lançou a campanha pela indicação de Francisco Cândido Xavier à premiação, em 1981, do Prêmio Nobel da Paz. A omissão é gritante e de inveja rasteira.
O deputado federal paulista Freitas Nobre foi quem alavancou a campanha junto ao público e às pessoas responsáveis, em Oslo, pelo referendo à indicação. Isto é verdadeiro. E promoveu, com o empresário Celso Gusmão, também de São Paulo, o tour de force que culminou na seleção de quase duzentos livros em várias línguas e diversos outros materiais encaminhados ao Instituto Nobel através da Comissão Nacional Pró-Indicação. A imprensa da época noticiou que a petição tinha a adesão de dois milhões de assinaturas de várias partes do mundo. (Para não deixar de ser sincero, fui informado, na ocasião, por colegas jornalistas, que esse número estava simpaticamente inflacionado. Mas, tudo bem. A rigor, o Chico, com mais tempo, arrebanharia tranquilamente até mesmo mais de dois milhões.)
Afinal, em 14 de outubro daquele ano, a Comissão de Oslo preferiu indicar ao prêmio, pelo grande esforço desenvolvido principalmente no Afeganistão, na Etiópia e no Vietnã, o Escritório do Alto Comando da Organização das Nações Unidas para os Refugiados
Achei – e repito – que a indicação foi absolutamente justa e o próprio Chico assim a considerou, divulgando então um belo texto de grande humildade e endosso à escolha. No mais, as indicações de Oslo, nessa área da luta pela paz mundial, sempre tiveram um componente muito forte de cunho político auspiciado pelo espírito da ONU.
Adiante, sem parar, na mesma alucinada atrelagem, mais respostas vão confirmando a falta de respeito à verdade e à memória do próprio Chico. Tão cioso dos valores históricos, Carlos Baccelli não conseguiu superar a idiossincrasia e omitiu o que ele sabia muito bem. Todo o movimento espírita sabia e sabe que foi o Divaldo quem propôs o nome do Chico, aliás, numa reunião pública, com centenas de ouvintes, dentre tantos Francisco Cândido Xavier e o próprio Carlos Antônio Baccelli. É deveras muita impudência divulgar qualquer versão em que se esconda o nome do Divaldo. Aconteceu em 1994, durante conferência feita pelo medianeiro de Joanna de Ângelis no Uberaba Tênis Clube, durante a qual o Baccelli lançou seu livroDivaldo Franco em Uberaba, editado pela Maio Editora. Naquele dia e naquele momento, o Chico narrou a história “Os irmãos do Arco-Íris”, que o Baccelli transcreve no seu livro À Sombra do Abacateiro. Foi exatamente ali, naquela hora, que Divaldo Pereira Franco lançou o nome do Chico. Carlos Baccelli a tudo presenciou, mas parece que está atacado por conveniente amnésia.
Honesto foi o Augusto César Vannucci, filho do César Augusto Vannucci, da TV Globo, que, narrando os trabalhos do pai nas áreas do teatro e da televisão, em seu livro De Ave César a Ave Cristo, abordou a questão do Prêmio Nobel. Registrou, então, referindo-se ao pai (pp. 30 e 31):
“Mesmo depois de deixar a direção do ‘Fantástico’, consegue de José Itamar, o novo diretor, apoio para uma campanha lançando Chico Xavier ao Prêmio Nobel da Paz. O Brasil e o mundo participaram dessa campanha. Houve apoio de gente de todas as religiões. Assinaturas de católicos, protestantes, umbandistas. Ainda que pareça incrível, as restrições partiram somente de algumas instituições espíritas, por acharem que a campanha poderia envaidecer o médium de Uberaba. O mentor de todo o movimento foi, na verdade, Divaldo Franco.”
E foi o Divaldo quem insistiu com o filho Augusto para que instasse junto ao pai César Vannucci no sentido de que turbinasse a campanha por todos os meios, principalmente pelo poderoso caminho da televisão.
Ora, o mutilado texto constante do seu livro, Carlos Baccelli o retirou da mesma gravação que eu também tenho em meus arquivos, tanto na fita cassete original como na cópia que fiz em DVD. Ouviu, portanto, pela segunda vez (a primeira foi ao vivo, quando ele mesmo esteve presente na reunião) o próprio Chico reconhecer o papel do Divaldo no lançamento da campanha; contudo, não teve enfibratura no mínimo ética de contar a verdade nessa biografia capenga dos 100 anos do Chico. Ante um ato hostil de tal natureza é possível medir o tamanho espiritual desse “médium”, que se jacta de escrever uma biografia “a mais completa”.
Enfim, dou como demonstrado que a história da campanha pelo prêmio Nobel da Paz está deturpada, distorcida, com plena consciência do Baccelli de que falo a verdade. E vamos, a partir daqui, analisar o capítulo mais deplorável: “A carta de 1962” (pp. 271 a 281).
À guisa de fidelidade à História, o autor entra em excitação polarizada e estampa a carta que, em 1962, Francisco Cândido Xavier escreveu para o amigo Joaquim Alves (o Jô), carta que foi o leitmotive da publicação do meu livro A Anti-História das Mensagens Co-piadas (Leymarie, 2006). Nele, abordei todas as implicações do estranho documento, que desafetos do médium Divaldo Pereira Franco levaram para o programa “Fantástico”, da TV Globo, em 29 de fevereiro de 2004, e, depois, apareceu na internet como um troféu de formidável pesquisa arqueológica. Como já disse na abertura desta matéria, analisei o momento histórico do mundo e do movimento espírita, e narrei tudo o que ocorreu nos bastidores da crise. A latere, demonstrei, com base em referências técnicas e doutrinárias, que não existiu plágio nenhum e que a carta, o papel do Chico e tudo o mais era fruto de uma época terrível (a turbulenta década de 60) na evolução do nosso planeta, quando as Trevas se aproveitaram da louca desorientação em voga para atacar o espiritismo e os dois maiores médiuns da ocasião. Mostrei que o Chico fora induzido a uma atitude completamente estranha à sua índole, tanto que, logo depois, arrependeu-se, reaproximou-se do Divaldo e com ele manteve até à desencarnação relacionamento fraternal, muito ao contrário do apócrifo diálogo narrado pelo Baccelli. Nada omiti daqueles idos, principalmente no que concernia ao importante papel da Federação Espírita Brasileira, ao tempo áureo em que Antônio Wantuil de Freitas e Armando de Oliveira Assis presidiram à respeitada instituição.
Diferentemente de Carlos Antônio Baccelli, que em momento algum aparece no cenário dos acontecimentos, acompanhei de perto todos os lances daquele lastimável episódio repleno de ódios e maquiavelismos. No entanto, ele acha que tem algum peso a pergunta que diz ter feito ao Chico sobre a crise e que está na página 271:
“Certa vez, pessoalmente, lhe perguntei:
- Chico, é verdade que você pediu perdão pelo episódio se 1962?...
- Quem lhe disse isso, meu filho?
- O nosso irmão...
- Não é verdade, meu filho, não é verdade! – respondeu, dando o assunto por encerrado.”
Esse “diálogo” com o Chico, inventado, atoleimado, burlesco, está em radical desacordo com o temperamento bonançoso do Chico e serve apenas para deixá-lo em grande descompasso com sua real e autêntica biografia. Nesse ponto, o “médium” Carlos Baccelli se supera em termos de abuso. Maldosamente, aplica reticências no nome do irmão para fingir uma ética que não possui, pois, com a leitura da carta que republicou, logo fica claro a quem quer se referir. Esse capítulo nada vale para ilustrar a biografia de Chico Xavier, mas com certeza vale tudo para avalizar negativamente a biografia do próprio autor. É um capítulo nauseabundo, de que o Chico não se compraz, escrito por alguém que lhe traiu a confiança e a quem fechou as portas da sua casa. Mas é também um capítulo precioso para marcar com exação quais foram as reais intenções do malogrado biógrafo.
Ainda na página 271, diz o chanchadeiro prócer da mediunidade que esse caso provocou no Chico “até o término de sua abençoada tarefa na Terra, em 2002, sérios aborrecimentos e dissabores”. Não! O que lhe causou sérios aborrecimentos e dissabores foi o que lhe fez o falso amigo, isto sim, bem grave, pois que nem a bondade cristã do Chico foi capaz de superar para perdoar. Mesma dificuldade que a missionária Joanna d’Arc confessou em relação ao rei Charles VII, que a traiu (“Foi aquele a quem tive mais dificuldade de perdoar”). E afirmar, como Baccelli o faz, que até desencarnar prevaleceu no Chico a opinião de que o Divaldo era mesmo um plagiador (p. citada) é tachar o Chico de hipócrita. Os fatos que narro em meu livro A Anti-História das Mensagens Co-piadasevidenciam que o episódio ficou completamente esquecido, tanto que eles voltaram a estar juntos, participaram juntos de reuniões e até mensagens mediúnicas receberam juntos, aparecidas em livro mediúnico do Divaldo. Francisco Cândido Xavier chorou muito, arrependido. Pediu ao Wantuil que recolhesse as cópias das cartas distribuídas (detalhes no meu livro acima indicado). Reconciliaram-se. Houvera pedido reserva, no final da carta, a fim de que não fosse lida indistintamente. Não obstante, exibiram-na escandalosamente na televisão e agora o “muito amigo” Carlos Baccelli também não lhe atendeu a recomendação e fez a divulgação em livro! E o faz quando o Chico nem está mais por aqui para apresentar algum comentário. (Descartada, é claro, a hipótese esquizofrênica de o Baccelli “receber” o Chico, em mais uma mistificação, e o espírito venha dizer que está feliz com a reedição do escândalo.) No mais, o Chico a rigor nada tinha para perdoar ao Divaldo. Perdoou, com certeza, àqueles que foram o motivo das suas lágrimas junto ao presidente da FEB.
Ou o Chico não passou de um grande tartufo, ou a afirmativa do Carlos Baccelli de que até a desencarnação o Chico ficara aborrecido é mais uma mentira cheia de caruncho. E se o Chico foi tão falso até àquele ponto, fingindo estar tudo bem entre os dois, cabe indagar por que não agiu da mesma forma com ele, Baccelli? Guardaria no íntimo toda a sua tristeza, mas voltaria a lhe abrir as portas. Se era para ser hipócrita, teria sido nos dois casos.
Súbito, vem esse biógrafo suspicaz e – repitamos para acentuar bem o gesto – resolve promover a exumação da carta, soerguendo agora o pendão da reabertura da crise. Com isso, “a biografia mais completa”, nesse ponto, comete excessos extenuantes e se consagra à margem da ética e da lealdade. Da minha parte, ao repassar todos os minuciosos detalhes do acontecimento, tive o zelo de não divulgar o documento em respeito ao desejo do autor. E fui por isso bastante cobrado. Se me propusera fazer completo levantamento histórico, como justificar que houvesse omitido para o leitor o documento principal? Inobstante, a cobrança foi injusta. Eu não poderia ter outro comportamento. Se critiquei a atitude dos que foram para a televisão fazer a divulgação, como incorrer no mesmo erro? Como dizer-me amigo do Chico e não atender ao seu apelo? Mais ainda quando tudo já estava superado, esquecido, morto. A divulgação, é claro, um dia aconteceria, no tempo histórico certo. Mas era de se esperar que o agente da divulgação não fosse ninguém ligado diretamente ao Chico e dentro de contexto em que todos os envolvidos já estivessem há alguns anos desencarnados. Posto assim, como poderia eu fazer a divulgação? Não seria sincero, nem decente. Estaria ulcerando o bom-senso dos homens de bem.
Da realidade das causas
Mas, tudo se entende se a gente entender que o Baccelli está mais uma vez liberando seu instinto raivoso, agora com esgares muito mais característicos. Por quê? Qual a causa? Que motivação faz desencadear esse comportamento e essa tortuosa personalidade? É o que veremos. Já expliquei as razões que moveram os adversários do Divaldo e do espiritismo, na década de 60, a dispararem o sinistro processo. Daqui deste ponto em diante, vou analisar, a título de remate, o que verdadeiramente levou o Carlos Baccelli a decidir reeditar o escândalo na ressurreição da malsinada carta, depois de maquinar entrevistas no Além, de repaginar a leitura do Prêmio Nobel e de insistir na sandice de que o Chico é o Allan Kardec. Todo esse quadro tem uma causa profunda. Dolorosa. Rascante. Conheceremos a gênese desse comportamento, sua fundamentação, seus objetivos. Para isso, vamos adentrar um pouco a psicanálise.
Ao elaborar a arquitetura da teoria psicanalítica, Freud foi buscar na mitologia grega, dentre outros referenciais, explicações que pudessem fundamentar a influência dos mitos no comportamento da alma humana. Na remissão dessa justificativa, ele estudou modelos diversos, mas se deteve, com especial atenção, na personagem de Hamlet, príncipe da Dinamarca, criada no século XVII por William Shakespeare, gênio da literatura inglesa que ele também analisa, como analisou a si próprio. É no drama de Hamlet que Sigmund Freud vai carpintejar as estruturas do Complexo de Édipo, quadro incestuoso em que a oculta atração pela mãe leva o príncipe da Dinamarca a matar o tio para vingar o assassinato de seu pai. (Similares circunstâncias estão no crime profético de Édipo Rei, que mata o próprio pai e se casa com a mãe.)
Nesse livro dos 100 anos – repiso para uma indagação que não cala –, o Baccelli teatraliza a preocupação de atender a um dever histórico; porém, é estranho que esse mesmo dever não o tenha levado a incluir a carta que ele mesmo datilografou e a resposta manuscrita do Chico.
Tomemos, como palavras finais, as de Joanna de Ângelis, em mensagem sobre a vingança, no livro psicografado por Divaldo Pereira Franco, Triunfo Pessoal (Leal, 2010):
“Fixa-se no adversário com implacabilidade, e suas metas se reduzem a essa inglória batalha pela sua extinção, do que dependerá a sua liberdade, a partir desse momento.
“O amor – que tudo fazem para não conseguir – igualmente lhes é muito valioso, embora reajam por desconfiança e ambivalência de conduta, gerando no enfermo um clima de simpatia e amizade, normalmente difícil de ser estruturada, em razão dos muitos tormentos que o avassalam.”
Estou fazendo esforço sincero para perdoar o Baccelli. Se não conseguir, talvez venha a procurar um psicanalista junguiano. Ou, com mais segurança e mais certeza, algum médium evangelizado para me dar passes e me ajudar a ser mais tolerante. Afinal, quem não precisa?
LUCIANO DOS ANJOS
Rio de Janeiro, 7.3.2011
Muito bom os apontamentos. Bastante esclarecedor sobre a história do Chico e a sua relação com Bacelli.
ResponderExcluirObrigado,
Que Jesus continue a te iluminar.
Psicanalíticamente falando, esta parece a briga de três irmãos(Bacceli, Divaldo e Luciano) pela atenção exclusiva de um pai provedor (Chico Xavier), de quem todos querem a atenção e fazem os conchavos tão intrinsecamente humanos na esperança de serem os escolhidos na preferencia deste pai, que me parece tão maior do que os próprios filhos possam perceber. Chico, que perdoou àqueles que lhe machucaram físicamente, não perdoaria três crianças brigando pelo sorvete mais colorido??? Parece-me mais um caso de "inveja do pênis", onde todos disputam o direito de serem mais parecidos com o "papai", e seguramente aquele que irá desposar, na fantasia de realização do desejo, a mãe (Doutrina Espírita), tendo sobre ela os direitos de todo macho autoritário, que pretende dela ter exclusividade e sobre ela o poder de fazer como e o que quiser. Complexo de Édipo, sim, mas onde todos os irmãos se vêem na mesma luta inconsciente pelo poder; no delírio narcísico de que só a própria imagem revela a verdadeira face da beleza, da razão, da verdade; e no temos de se descobrirem castrados, pois jamais a mãe desposará o filho, para o que o pai terá de interditar a todos, devolvendo a cada um a sua própria castração, facultando-lhes o direito e o dever de se descobrirem humanos, conhecedores da verdade parcial, para o que terão que se unir e se tolerar em nome da vida comum, da convivência fraterna, da tolerância, da compreensão, e enfim do perdão mútuo, pois todos ocupam a mesma escala evolutiva.
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